Há vida na Caverna
Sob um viaduto, com as próprias mãos, um homem e uma mulher construíram o local onde vivem.
Sob um viaduto, com as próprias mãos, um homem e uma mulher construíram o local onde vivem.
Como uma linha tracejada que leva ao X do mapa, as roupas coloridas penduradas no varal mostram o local da caverna. E ali, embaixo de um viaduto, está o que para Carlos Amaro Campos dos Santos, 45 anos, pedreiro por profissão e catador de latas e papelão por necessidade, e a companheira Juliana Aparecida da Silva, 30 anos, é um tesouro: a casa onde vivem.Ele é o homem da caverna, como é conhecido na redondeza, e ela, a dona da caverna. Juliana é quem organiza o quarto, estica a colcha amarelo-ovo, lava as roupas e as estende no varal, e mantém sempre limpo o tapete que cobre o piso de chão batido que ainda é maioria no casebre. O assoalho de madeira, já iniciado na sala, aos poucos vai aumentando com os sarrafos que Carlos cata nas suas andanças pelas ruas. Aliás, cata tudo que venha a ter utilidade para a casa. Os três sofás e o balcão da cozinha foram achados dessa maneira.
Carlos e Juliana batalham para sobreviver, mas têm ajuda de muitas pessoas. "No Natal, recebemos muitas cestas básicas. A sala fica cheia de sacolas. Se alguns dos nossos amigos têm necessidade, dividimos com eles o que ganhamos", diz Juliana. Algumas pessoas deixam as sacolas no portão da cerca de madeira que delimita o pátio da caverna e vão embora. Elas temem, diz Carlos, que morem ali pessoas ruins. Mas ele nega ter cometido qualquer maldade. Mesmo "desviado" da Igreja, como gosta de dizer, se orgulha de levar uma vida digna e honesta.
São portadores de HIV e infectados por uma imensa vontade de viver. Carlos tocava violão. Acha que foi por não ter se apegado à religião e viver nessa vida que hoje está doente. Ganhava dinheiro e andava com muitas mulheres. É pai de cinco filhos que não vê faz tempo. Gleci, nome que leva pro resto da vida tatuado no braço esquerdo, foi seu primeiro amor e mãe dos filhos. Juliana também é portadora da "doença que mata mais rápido". Num olhar perdido quando o companheiro afirma ser ele quem transmitiu a doença, se acusa de ser ela quem contraiu o vírus primeiro. Os dois se conheceram há dois anos na Vila Pedreira, em Esteio. O namoro demorou a engrenar, Carlos impunha que Juliana largasse a maconha e o loló para que ficassem juntos.
A dona da caverna, mesmo ali, mantém a vaidade. E sonha em ser mãe. Na caverna, Juliana dá leite a um gatinho. "Dou na mamadeira, porque no pires ele não toma", diz, lamentando o fato de não poder ter filhos. Juliana perdeu a virgindade com 11 anos. Às vezes, pensa que foi prostituída por umas peças de roupas. Na época era encantada por um rapaz mais velho, de 18, que cometia alguns pequenos assaltos. Numa dessas, as blusas e saias, produtos do roubo, deixaram Juliana louca. Ele negociou, ela vacilou. Desde lá, Juliana transou com muitos homens sem precaução e nunca engravidou. Mas talvez tenha adquirido o que hoje lhe mancha a pele e enfraquece o sistema respiratório.
O homem e a dona da caverna estão ansiosos. Eles esperam a data de voltar à Igreja. Carlos quer ser reintegrado à religião e Juliana vai ser batizada. Isso é motivo de festa. Na caixa de papelão onde guardam os alimentos que ganham, e que sempre está sob vigia permanente por causa dos ratos, estão as duas latas de leite condensado e o pacote de coco ralado. Eles são parte da receita de um bolo que a irmã de Carlos prometeu fazer para a festa no dia tão esperado. O próximo passo já está pensado. Mesmo "embolados", como dizem, querem se casar.
A caverna é grande, tem seis espaçosas peças. Só o banheiro é mais improvisado que o resto. O banho de mangueira é frio e as necessidades são feitas em sacolas plásticas, que vão parar no valão vizinho. Existe até quarto de hóspedes para receber os parentes vindos do Interior. Uma rústica cama guarda dois colchões, para visitas maiores. A luz das lâmpadas esquenta o ambiente colorido pelas cores dos diversos tipos de madeira que encontram para paredes. O teto é baixo, aliás, muito baixo. É impossível caminhar ereto. A posição arqueada, de como alguém que sofre de dores lombares, é inevitável. Além disso, é escuro. Preto da bruma de fumaça. Mas a limpeza que aplicam ao ambiente faz com que a casa não seja fedorenta. Forte é o cheiro da madeira que queima no fogão a lenha usado quando o gás do outro fogão de duas bocas acaba. Carlos compra o gás, um pedaço de carne, e quando dá, um "agradinho pra Juli", com o que ganha da venda do que cata e do artesanato que faz. Ele é um exímio montador de barcos e navios dentro de garrafas de vidro.
Mas o homem da caverna sonha em sair dali. Juliana também. Os dois querem uma casa com banheiro decente. Carlos quer pendurar na cerca em frente à casa a placa com os dizeres "serviço de pedreiro e carpinteiro". Sente na pele o preconceito de quem não o contrata por viver ali. Juliana quer reconquistar a dignidade com endereço, CEP e um local sem o barulho do tráfego dos caminhões. Quem passa pela BR 116, e nota as roupas do varal, penduradas e cheirosas a sabão de glicerina, entre Canoas e Esteio, não pode mais tratar Carlos e Juliana como seres invisíveis. Estão ali não porque querem, mas porque só ali conseguiram ficar.
3 comentários:
Parabéns pelo blog e pelas fotos. É uma pena que existam tantos Carlos e Julianas não só entre Canoas e Esteios.
Abraços!
Grande fotos, baita texto. Estava inspirado, hein, Marenco?(risos)
ah.. eu sou suspeita já! rss. mas essa matéria está incrível. eu estou dizendo, você vai ser meu ídolo quando eu terminar de ver todas suas fotos e ler seu blog. rss.
incrível.. tudo tem algo a ser transmitido, a ser passado, algo pra se aprender. e esse casal com certeza é exemplo disso.
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